Minha escolha, minha profissão

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segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Muito reflexivo

Suficiente

“Imperfeições [...]
são lembretes de que estamos nessa juntos”
-Brené Brown
 
A humanidade está em julgamento. Montessori disse isso em 1936, no seu livro A Criança. A humanidade está em julgamento pelos males perpetrados contra a infância, sucintamente. E nós, adultos, estamos todos na posição de réus. A pergunta que fica é: quem nos julga? E a resposta que sobra é: A Criança. E a Criança, invariavelmente, nos declara inocentes. Se nós somos inocentes aos olhos da infância, e somos réus, o que em nós mesmos permite que nos declaremos culpados?
É verdade. O adulto oprime a criança. E por isso deve ser sumariamente condenado. É verdade, ele inibe seu desenvolvimento. Culpado de novo. É verdade também que destrói a capacidade inata da criança para amar o esforço, o trabalho e a concentração. Mais três vezes culpado. Deforma a sensação de alegria e transforma em obediência servil a bela autodisciplina infantil. Culpado ainda outras duas vezes. Construímos ambientes que fazem recuar a criança pequena. Culpados. Interrompemos todo o trabalho a que ela se dedica. Culpados. Moldamos sua rotina de acordo com nossos horários e não com o seu tempo. Culpados. Culpados. Culpados.
Entretanto a criança nos perdoa. E o que faz com que ela seja capaz de perdoar nossos erros é a mesma coisa que faz com que ela perdoe aos seus próprios e levante a cada vez que cai, até aprender a andar. É o mesmo que faz com que ela tente de novo e de novo e de novo até conquistar cada nova habilidade ao longo de seus primeiros anos de vida. Ela nos perdoa porque tem compaixão por nós. E perdoa-se porque tem compaixão por si mesma. Em outros termos: ela se perdoa e nos perdoa porque se sabe suficiente e nos sabe suficientes também.
A criança tem dentro de si os segredos para o estado de supremo equilíbrio da humanidade. E nós só muito recentemente descobrimos que a autocompaixão é um dos aspectos mais importantes para que nos sintamos bem conosco mesmos (veja aqui) e para que vivamos uma vida mais completa (veja aqui e aqui). A compaixão também é importante para o resto do mundo (veja isso aqui). É aqui que entra a pena à qual devemos nos submeter por sermos culpados por todos aqueles crimes contra a humanidade.
Ser culpado de tanto não é pouco. Não é leve. Não deixa tranquilas nossas consciências se nós realmente compreendemos o extremo a que levamos o sofrimento imenso da infância. Só há, porém, um caminho de saída: confiar na criança e observá-la, para que sejamos capazes de compreender suas necessidades, preparar o ambiente e permitir que ela seja livre nele, de forma útil e engajada.
A criança, se é deixada livre, erra. E precisa ser perdoada por seus erros. Já dissemos no Lar Montessori que se você não gritaria com um amigo por ele derrubar vinho na toalha durante a ceia de fim de ano, então você também não deve gritar com seu filho quando ele derruba o suco do almoço. Seu amigo já está no mundo há algumas dezenas de anos. Seu filho está aqui há muito menos tempo, e ainda está aprendendo. Se você não grita com o adulto, não grita com a criança. Se não bate no adulto, não bate na criança – a criança não pode se defender.
O oposto, no entanto, também é verdadeiro. Se você já está tentando construir, todos os dias, em todos os momentos de sua vida, um lar pacífico, se está partindo para uma linha de disciplina positiva, se acredita na elevação da personalidade infantil em um ambiente no qual não sofra nenhum tipo de violência… Se você acredita em tudo isso para a criança, precisa acreditar em tudo isso para o adulto. Se você acredita em uma vida sem violência para o seu filho, precisa acreditar em uma vida sem violência para você. Se você deseja que seu filho ame a si mesmo e consiga lidar com seus erros e se perdoar, você precisa desejar isso para você mesmo. Permitir isso para você mesmo, talvez seja mais adequado.
Brené Brown é uma pesquisadora que aparece de vez em quando nos textos do Lar Montessori, e não é sem mérito. Ela desenvolveu uma pesquisa realmente bela, muito bem construída, sobre vulnerabilidade e vergonha. Você pode ver a pesquisa dela em dois dos links acima (ah, sim, veja os links acima! Um é um texto curto e os outros três são vídeos nos quais você pode ativar legendas em português, e os vídeos vão realmente mudar a forma como você vê algumas coisas).
Em seu livro A Coragem de Ser Imperfeito, Brown detalha os resultados de sua pesquisa e chega a duas conclusões – entre muitas outras -, que vamos explicar de forma exageradamente sucinta em dois parágrafos cada uma.
Vivemos em uma cultura de nunca o suficiente. Tudo o que fazemos é pouco perto do que achamos que deveríamos conseguir fazer. Perto do que somos levados a acreditar que precisamos ser capazes de fazer. Nós não trabalhamos o suficiente, não ganhamos o suficiente, não ficamos tempo suficiente com nossos filhos, não nos alimentamos bem o suficiente, não economizamos o suficiente, não curtimos a vida o suficiente, não nos arriscamos o suficiente, não somos tranquilos o suficiente. A lista é infinita, e nos fere a cada dia. Nos leva o sono das noites e a tranquilidade das manhãs, repõe tudo com stress, ansiedade, medo. A insegurança resultante de não sermos o suficiente nos aterroriza tanto que precisamos vestir uma armadura contra ela. Essa armadura nos protege dos ferimentos. Mas também nos protege do amor. E essa armadura nos protege da compaixão. Vinda dos outros, para os outros, ou de nós para nós mesmos.
Essa mesma cultura faz com que desejemos que nossos filhos aprendam tudo cada vez mais cedo. Colocamo-los em escolas de esportes, artes, línguas, pouco depois de seu primeiro aniversário. Não confiamos na capacidade da criança de se desenvolver o suficiente seguindo seus impulsos interiores, nem mesmo no período logo após o nascimento. Queremos que aprendam a ler e a escrever cada vez mais cedo – e se isso não for feito com a naturalidade total do método Montessori, pode ser desagradável, forçado e cansativo, estressante e pressionador. Queremos que nossas crianças sejam melhores do que as outras. Que estejam à frente da média de desenvolvimento de sua idade. E vale perguntar: se todos nós desejamos estar à frente da média, que média sobra? Aqueles que estão na média, que aprenderam a falar, andar, comer, escrever e contar na idade média estão condenados ao fracasso? Aqueles que aprenderam antes, destinados ao sucesso? Que sucesso? Qual é o sucesso que é suficiente em nosso mundo?
A outra descoberta de Brené Brown diz que, se desejamos uma vida completa, vivida de coração inteiro, precisamos nos saber suficientes. Isso não significa, nem pode significar, autoindulgência, falsa autoestima ou narcisismo. Na verdade isso é o oposto da autoindulgência, da falsa autoestima e do narcisismo. Se somos suficientes não somos perfeitos, mas estamos tentando. Se somos suficientes não fazemos vista-grossa para nossos erros, mas os reconhecemos e nos sabemos suficientes para evitar aquele erro no futuro, e suficientes para pedir desculpas sinceras. Se somos suficientes não nos adoramos acima do resto do mundo, e nos achamos um pouquinho mais perfeitos do que os outros 6.999.999.999 de humanos. Somos iguais, mas sabemos que somos suficientes para, primeiro, estarmos na humanidade e, segundo, trabalharmos pelo seu desenvolvimento saudável, equilibrado, justo e feliz.
Todos nós, os suficientes, os insuficientes, os autoindulgentes, os narcisistas, os perfeccionistas, os que têm e os que não têm boa autoestima, todos nós erramos a valer. A diferença fundamental é que alguns de nós sentem que cometem erros e outros sentem que são erros. Se você tem filhos, sabe que em alguns momentos nós sentimos que somos erros. Mas nós não somos, e isso é muito importante. Isso é muito importante porque se formos erros não podemos fazer nada para mudar. Essa é a criança que acredita que é burra ou é desastrada. Esse é o adulto que se acredita insuficiente, incapaz, errado, torto. Por outro lado, se cometermos erros, podemos reconhece-los, podemos trabalhar sobre eles, podemos nos desligar deles, observarmos de longe, podemos compreender. Nós podemos mudar. Se nós somos erros, não temos como mudar isso. Se nós cometemos erros, podemos ser suficientes para mudar nossas atitudes, aspectos de nossas vidas ou de nossas personalidades que nos permitam cometer menos erros.
Isso vale para a criança. Isso vale para o amigo que derramou vinho em sua toalha. Isso vale para você, todos os dias de sua vida. De agora até sempre. A compaixão é o maior dom concedido à personalidade humana, ou conquistado por ela ao longo de milhões de anos de evolução. A criança é compassiva. Ela perdoa e perdoa-se. Ela permite que tentemos de novo, renova as esperanças dia após dia. Ela se permite tentar de novo, renova as próprias esperanças incessantemente. Devagar, uma respiração de cada vez, nós podemos tentar aprender.
Da próxima vez que você for dar uma bronca em sua criança, tire três segundos para uma inspiração profunda, e pense: “Ele é o suficiente”. Da próxima vez que você for dar uma bronca em você mesmo, ou em você mesma, tire cinco segundos para uma inspiração profunda, e sussurre (em voz baixa, mas com voz real): “Eu sou o suficiente”. Isso não é autoajuda barata. Em seguida, considere cada uma de suas atitudes inadequadas, comprometa-se a alterar cada uma delas.
Você, eu e todos os adultos ainda estamos no banco dos réus. Mas nossa pena não é de castigos psicológicos. Nós fomos condenados à graça de trabalhar pelo progresso da humanidade, e nos foi concedida a alegria de termos como parceiros pequenos novatos muito experientes, por mais contraditório que pareça. Nós podemos respirar profundamente agora, e reconhecermos em nós e em nossos parceiros pessoas suficientes para a jornada da vida.